24 fevereiro, 2007

Velhos erros da mídia brasileira

Diante de episódios marcados pela gravidade da ação humana, a mídia brasileira tem se mostrado incapaz de mediar um debate e gerar informações satisfatórias à nação.

De modo geral, o caso do garoto João Hélio Fernandes foi abordado de duas maneiras pela mídia brasileira. De um lado, a superficialidade das matérias que apontam os culpados como representantes da evolução da barbárie humana. Do outro lado, uma abordagem teórica exaustiva que restringe o debate aos círculos acadêmicos e aponta a "desigualdade social" como principal culpada.

O jornalista precisa ter uma postura equilibrada diante de assuntos que envolvem comoção nacional, não apenas abraçar um lado.

O exemplo da jornalista e apresentadora Fátima Bernardes é simbólico. Durante a entrevista com os pais do garoto João Hélio, nota-se a opção pela condução emotiva da matéria.

Importante lembrar que a matéria dirigida pela âncora do Jornal Nacional (JN) foi veiculada no Fantástico, programa de maior apelo popular. A escolha pela apresentadora para a condução da matéria não foi aleatória. Fátima Bernardes é a personificação do modelo de mãe contemporânea que trabalha, está ao mesmo nível do marido e cuida dos filhos. Nada mais apelativo e tendencioso ao telespectador do que assistir duas mães lamentarem o episodio da morte de João Helio.

Ao aproximar Fátima Bernardes de Rose Fernandes, mãe do garoto, a Rede Globo abandonou o princípio jornalístico da "isenção na abordagem" e optou por ouvir apenas um lado.

Apresentar uma análise equilibrada pouco tempo depois do acontecimento não é tarefa fácil. No entanto, é função do jornalista evitar abordagens superficiais.

A atitude da Rede Globo foi seguida pela maioria dos grandes veículos de comunicação. A revista Veja mostrou uma capa cujo subtítulo questiona: "Não vamos fazer nada?". A pergunta da revista é direcionada para o público da classe média que a cada dia mais se esconde da violência urbana e alimenta a indústria da segurança. Trata-se, portanto de uma indagação retórica cuja resposta pretende alimentar a rebeldia daqueles que pensam ser a próxima vítima.

A resposta à cobertura parcial da mídia no episódio foi vista na última semana. Debates sobre a redução da idade penal alimentam editoriais e discursos no plenário em Brasília. Mais uma vez a mídia brasileira preferiu apresentar culpados e soluções teóricas, deixando de lado um interesse maior em benefício à nação.

21 fevereiro, 2007

O dia de ontem*

O aviso sobre a efetivação no trabalho denunciava o dia atípico. A ordem era para ir até o departamento pessoal arrumar as últimas pendências do registro em carteira. Finalmente, eu deixaria de ser estagiário para me tornar um funcionário.

Larguei a bolsa, sai da sala e tomei a calçada. A avenida São João no centro da cidade era a mesma, travestis, nigerianos, pivetes dormindo no chão. Às 10h30 entro na recepção do dp e dou: - Bom dia Sandra! Ela ignora o cumprimento, pois está mais interessada em pegar as dicas da nova função: - Aqui você encaminha a ligação... Eu sento e aguardo o fim da exposição.

Em seguida, avisto ao lado Benedito, o cozinheiro cuja estória de vida mais lembra a Odisséia de Homero: - E aí volta quando? Benedito enche os olhos e ensaia um leve balanço: - Ainda não dá, só em outubro talvez. Em nossa última conversa, Benedito disse que estava com “fogo selvagem”, uma doença que deixa úlcera na pele.

Puxo conversa enquanto espero ser atendido e descubro Benedito sensível, carente: - Mas como aconteceu isso? Benedito responde duro de olhos baixos: - Tô com a resistência baixa. Deu soro-positivo.

A triste novidade causa silêncio entre nós dois. O espaço reflexivo é interrompido pelo barulho indelicado de Sandra ao telefone: - Pode subir! Na tentativa de resgatar pensamentos dispersos, olho para Benedito e lamento a condenação latente do vírus HIV. Agora, lágrimas, e a conversa toma um rumo qualquer, até que dois homens se aproximam: - Passa os celular e as carteira! Sou o primeiro a entregar o celular e ir para o canto da recepção, seguido por Sandra e Benedito, que enxuga o rosto para entender o que acontece.

Uma arma caminha sutilmente pelo corredor até o escritório; a outra vigia o trio rendido na recepção. Enquanto aguardamos novos comandos, a arma fala para mim: - Passa o relógio. O instante se torna estático. As armas regem o tempo.

Entrego a mercadoria e escuto o outro da arma se aproximar, e nova ordem segue. Todos se dirigem ao escritório. Lá dentro, Rose, Daniela e Valéria já estão deitadas no chão, atitude seguida intuitivamente por Benedito, Sandra e eu.

As armas reclamam o dinheiro. Daniela levanta a face do chão e abre o armário, e retira o dinheiro, e presta contas. No chão, Valéria olha para o anel de noivado; Rose ora com fervor; Sandra pensa; Benedito, quieto; eu olho ao redor e paro em Benedito, penso que todos estão reduzidos à mesma condição diante das armas. Nenhum mal degenera tanto quanto a natureza humana, penso.

Seguem-se momentos de silêncio. As armas saem da sala, trancaram a porta e para dentro do escritório ficamos. Daniela inicia o choro antes reprimido.

Rastejo pelo chão e observo pelo vão da porta que as armas já foram. Ao tentar pedir ajuda pelo telefone, nota-se que as linhas foram cortadas. Rose, elétrica, lembra da bolsa; Valéria e Daniela se consolam; Sandra pensa; Benedito, quieto.

Os minutos sem comunicação despertam o estranhamento dos outros setores da empresa que logo acionam a polícia. O circuito interno revela a chegada das autoridades. A calçada do edifício 1081 da Avenida São João é tomada por carros do Deic, além da presença de outras três viaturas da civil.

Lá dentro, o chute do policial na porta trancada arranca de Daniela o último grito de sofrimento. Os seis estão agrupados no canto da sala enquanto a polícia revista o local.

Olhares estranhos de autoridade são lançados sobre a textura negra de Benedito que dá graças a Deus pela vida. Aos poucos os seis saem do prédio e dividem a calçada com travestis, nigerianos, pivetes e a polícia. Lavram-se boletins de ocorrência e a movimentação atrai curiosos.

Do meio da confusão, Benedito atravessa a rua e relembra as dores da úlcera.

Na calçada, agradeço a Deus. Na manhã de ontem, dia 31 de agosto de 2006, o episódio me faz pensar que sou jovem ainda.

Já tenho outro relógio e o tempo voltou estranhamente. Uso agora o celular do meu irmão.

*Publiquei esse texto originalmente no blog do amigo e colega de profissão Marcelo Santos (http://www.usinadepautas.blogspot.com/)

11 fevereiro, 2007

Que jornalista eu quero ser?

Uma vez que pensamentos dirigem ações, respondo à questão a partir de meus conceitos para jornalista.

De modo geral, acredito que jornalista é atributo de sujeito interessado na essência da vida e no compromisso para com ela. O rigor da função exige que o jornalista transcenda a rotina burocrática do escritório para extrair de realidade os vários códigos.

Defino também o jornalista como o sujeito capaz de estabelecer o diálogo com o maior número de pessoas a partir de iniciativa de ler o cotidiano.

No entanto, a capacidade de apreender o mundo e mostrá-lo às pessoas é resultado de exercícios de apuração da alma e desenvolvimento da habilidade da escrita. Somente o jornalista sensível à comunicação das coisas e dos seres pode construir informação relevante. A habilidade na escrita é outro conceito inerente ao jornalista. A capacidade de transformar a informação em um código aceitável depende do uso correto do meio.

Por isso, é útil ao jornalista expandir o conhecimento de estruturas narrativas e estilos de linguagem. A base comparativa influencia também o profissional. O estudo de jornalistas de vários estilos e épocas contribui para a formação, pois o jornalista é parte do desenvolvimento histórico-social.

Assim, acredito que vou corresponder a esses conceitos da profissão e junto atribuir meu valores individuais para ser jornalista. Penso também que devo estar atendo aos conceitos que hoje julgo essenciais à profissão, mas que, ao longo dos anos, podem sofrer adaptações. No entanto, em nenhum momento vou abandonar valores sociais universais de cuja responsabilidade o jornalista não pode deixar de zelar.

07 fevereiro, 2007

Estação-integração

A bengala de Antônio deixa o vagão do trem e risca o chão da plataforma em movimentos semicirculares contínuos. Ele decide esperar enquanto uma multidão se afunila na escada-rolante aguardando a próxima série de degraus vazios.

Enquanto isso, Antônio apura os sentidos. Ele sente respirações ofegantes, cremes femininos e nicotina em excesso. Escondido atrás dos óculosescuros, escuta reclamações sobre o trabalho, o monólogo ao celular e, por fim, um breve silêncio. É sinal de que a plataforma está vazia e ele já pode caminhar até a escada-rolante.

Já no segundo andar da estação-integração, Antônio percebe que terá de percorrer sozinho os duzentos metros até a plataforma seguinte, onde pretende embarcar até seu destino final.

A dificuldade do percurso não assusta Antônio, afinal há dois anos ele pisa o mesmo trajeto. Antônio recolhe agora a bengala junto ao corpo e passa pela catraca da segunda plataforma. Marcando mais alguns passos, ele caminha excedendo um pouco o limite da faixa amarela de segurança.

Antônio segue riscando o chão até o começo da plataforma, quando sua bengala esbarra em algo. Antônio pára e percebe que a área reservada para o embarque de portadores de deficiência está ocupada por uma pessoa:

- "Desculpa", fala Antônio de olhos baixos.

- "Sem problemas", responde uma voz feminina.

Ambos estão lado a lado à espera do embarque. O barulho metálico das rodas de ferro no trilho anuncia a chegada da composição. A aproximação do primeiro vagão traz um vento que arranca da voz feminina um cheiro doce de perfume. Antônio sente aquele aroma e mecanicamente tenta espiar de canto de olho a pessoa ao lado, mas a vista é embaçada, e logo Antônio abaixa os olhos.

O sinal de abertura das portas é acionado e Antônio sente um fino antebraço correr-lhe a cintura. Antônio recolhe a bengala junto ao corpo. Ambos dão os braços e entram no vagão. Lá dentro, os dois se assentam em lugar para uso especial e iniciam a viagem.

04 fevereiro, 2007

Lampejo

Novamente, aquele sonho.

Joza abre os olhos e eleva as mãos até o rosto. Às 3h20 da madrugada ele desiste do sono, pois sabe que logo será tomado por uma angústia dominante. Ao perceber os primeiros sintomas da crise, percorre com a mão a cômoda ao lado em busca da lamparina, presente da mãe na última visita. Em movimento descontrolado, considera que o objeto não está lá. No lugar, a superfície lisa da madeira fria que gela a palma da mão de Joza.

A noite no dormitório do Centro de Reclusão Psíquica já revelara a Joza momentos de medo e alucinação, no entanto aquela era a primeira vez que ele sentia o abandono. A ausência do controle sobre a luz acentua o desespero em Joza. A respiração ofegante o obriga a sentar na cama para buscar o ar escasso aos pulmões. A inquietação ocupa-lhe todos os sentidos.

Os poucos passos de Joza até o final do quarto chamam a atenção da enfermeira Custódia que, deixando cair o livro que lia, agarra a cintura daquele homem de corpo sadio e mente ferida.

– “Senhor Joza?”. Custódia sustenta Joza, ambos se equilibram ao longo do corredor até a enfermaria. Aos poucos, mais enfermeiros chegam para ajudar. Além da respiração ofegante e dos movimentos agitados, o primeiro diagnóstico do rápido exame feito na enfermaria não indica nenhuma condição crítica.

– “Acalme-se senhor Joza, o senhor está nervoso!”, afirma uma voz de enfermeiro, no quarto branco. Mesmo naquele ambiente iluminado, Joza sente a escuridão tomar-lhe o interior, roubando a vida. Daí para frente, são necessários quatro enfermeiros para segurar o corpo descontrolado sobre a maca. A equipe descreve a situação para o médico plantonista que orienta uma dose extra de calmante ao doente.

Enquanto Custódia prepara a medicação, Joza descobre-se sem os sentidos, cercado pela estrutura nula do corpo; mas capaz de discernir entre o estado vivo e morto das coisas. A equipe médica estranha o silêncio repentino do doente e decide apenas acompanhar o desenvolvimento do sono de Joza naquela noite.

Percebendo-se de volta ao quarto, Joza é levado novamente aquele sonho, sendo que dessa vez o mundo onírico é compreendido a partir da realidade.

Incapaz de movimentar as extensões do corpo, Joza transcende o espaço e é levado ao encontro com Deus que lhe toca a cabeça com uma de suas mãos. Com a outra mão, Deus entrega-lhe a lamparina. Ao receber o objeto, os sentidos de Joza são restabelecidos e ele acorda sobre a cama do dormitório no Cento de Reclusão Psíquica.

Na manhã seguinte, Joza resplandece uma fisionomia nunca antes vista por enfermeiros, médicos e doentes do Centro de Reclusão Psíquica. Confiança no desenvolvimento das tarefas diárias e até um senso de humor inesperado apresentam um novo Joza a todos.

– “Qual a é a novidade? Mudou de remédio?”, questiona um outro doente.

– “Não, deixei de tomá-los”, responde Joza, terminando a frase com um sorriso.

– “Ele deixou de tomá-los! Ele deixou de tomá-los!” anuncia o doente a todos.

Surpresos, médicos, residentes e enfermeiros se aproximam de Joza para abraçá-lo, e o coro de vestes brancas confirma:

– “Você conseguiu!”.

O resgate do equilíbrio psíquico sem a influência da droga garante a Joza e liberação médica e a possibilidade de iniciar uma nova vida. À porta do Centro de Reclusão Psíquica, Joza se despede de cada doente com um abraço e a repetição da frase:

– “Deixei de tomá-los”.