21 fevereiro, 2007

O dia de ontem*

O aviso sobre a efetivação no trabalho denunciava o dia atípico. A ordem era para ir até o departamento pessoal arrumar as últimas pendências do registro em carteira. Finalmente, eu deixaria de ser estagiário para me tornar um funcionário.

Larguei a bolsa, sai da sala e tomei a calçada. A avenida São João no centro da cidade era a mesma, travestis, nigerianos, pivetes dormindo no chão. Às 10h30 entro na recepção do dp e dou: - Bom dia Sandra! Ela ignora o cumprimento, pois está mais interessada em pegar as dicas da nova função: - Aqui você encaminha a ligação... Eu sento e aguardo o fim da exposição.

Em seguida, avisto ao lado Benedito, o cozinheiro cuja estória de vida mais lembra a Odisséia de Homero: - E aí volta quando? Benedito enche os olhos e ensaia um leve balanço: - Ainda não dá, só em outubro talvez. Em nossa última conversa, Benedito disse que estava com “fogo selvagem”, uma doença que deixa úlcera na pele.

Puxo conversa enquanto espero ser atendido e descubro Benedito sensível, carente: - Mas como aconteceu isso? Benedito responde duro de olhos baixos: - Tô com a resistência baixa. Deu soro-positivo.

A triste novidade causa silêncio entre nós dois. O espaço reflexivo é interrompido pelo barulho indelicado de Sandra ao telefone: - Pode subir! Na tentativa de resgatar pensamentos dispersos, olho para Benedito e lamento a condenação latente do vírus HIV. Agora, lágrimas, e a conversa toma um rumo qualquer, até que dois homens se aproximam: - Passa os celular e as carteira! Sou o primeiro a entregar o celular e ir para o canto da recepção, seguido por Sandra e Benedito, que enxuga o rosto para entender o que acontece.

Uma arma caminha sutilmente pelo corredor até o escritório; a outra vigia o trio rendido na recepção. Enquanto aguardamos novos comandos, a arma fala para mim: - Passa o relógio. O instante se torna estático. As armas regem o tempo.

Entrego a mercadoria e escuto o outro da arma se aproximar, e nova ordem segue. Todos se dirigem ao escritório. Lá dentro, Rose, Daniela e Valéria já estão deitadas no chão, atitude seguida intuitivamente por Benedito, Sandra e eu.

As armas reclamam o dinheiro. Daniela levanta a face do chão e abre o armário, e retira o dinheiro, e presta contas. No chão, Valéria olha para o anel de noivado; Rose ora com fervor; Sandra pensa; Benedito, quieto; eu olho ao redor e paro em Benedito, penso que todos estão reduzidos à mesma condição diante das armas. Nenhum mal degenera tanto quanto a natureza humana, penso.

Seguem-se momentos de silêncio. As armas saem da sala, trancaram a porta e para dentro do escritório ficamos. Daniela inicia o choro antes reprimido.

Rastejo pelo chão e observo pelo vão da porta que as armas já foram. Ao tentar pedir ajuda pelo telefone, nota-se que as linhas foram cortadas. Rose, elétrica, lembra da bolsa; Valéria e Daniela se consolam; Sandra pensa; Benedito, quieto.

Os minutos sem comunicação despertam o estranhamento dos outros setores da empresa que logo acionam a polícia. O circuito interno revela a chegada das autoridades. A calçada do edifício 1081 da Avenida São João é tomada por carros do Deic, além da presença de outras três viaturas da civil.

Lá dentro, o chute do policial na porta trancada arranca de Daniela o último grito de sofrimento. Os seis estão agrupados no canto da sala enquanto a polícia revista o local.

Olhares estranhos de autoridade são lançados sobre a textura negra de Benedito que dá graças a Deus pela vida. Aos poucos os seis saem do prédio e dividem a calçada com travestis, nigerianos, pivetes e a polícia. Lavram-se boletins de ocorrência e a movimentação atrai curiosos.

Do meio da confusão, Benedito atravessa a rua e relembra as dores da úlcera.

Na calçada, agradeço a Deus. Na manhã de ontem, dia 31 de agosto de 2006, o episódio me faz pensar que sou jovem ainda.

Já tenho outro relógio e o tempo voltou estranhamente. Uso agora o celular do meu irmão.

*Publiquei esse texto originalmente no blog do amigo e colega de profissão Marcelo Santos (http://www.usinadepautas.blogspot.com/)

1 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Cara*%#...
Acho que se fosse eu tinha borrado o canto da sala.. rsrs...
Agora entendo o seu trauma do dp... kkkk

sábado, fevereiro 24, 2007 11:39:00 AM  

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