10 agosto, 2007

Idade Regressiva*

- Psiu! , Oh!, Psiu!, exclama o velho China na calçada da Rua Conselheiro Carrão, altura do número 380. No outro lado da via, Seu Genaro não escuta o chamamento do amigo que quase não tem força para a segunda convocação.

China está com Fibrose Pulmonar, doença que apareceu 17 anos depois de vencer o vício do fumo. Qualquer esforço o obriga a parar e buscar fôlego.

Persistente, China, aos 74 anos, lança um forte “psiu” e atrai o olhar de uma pessoa que está ao lado de Seu Genaro. Com a mão, pede para o transeunte chamar o amigo. Seu Genaro atende ao pedido e atravessa a rua com dificuldade.

Ao se aproximar, ficam evidente o aparelho auditivo no ouvido direito – motivo pelo qual não respondeu aos berros de China – e o olho vermelho de choro.

- Mas tá chorando?, diz China. - É o Rafael, meu filho, tá com os rim parado, lamenta Seu Genaro. O sotaque italiano denuncia a herança fônica desse filho de imigrantes. - Catso, já tenho 86. Eu não preciso mais, quem precisa é meu filho, desabafa.

China, cansado, se apóia no telefone público e observa o amigo. Seu Genaro veste uma calça social preta gasta, no bolso um chaveiro do Palmeiras; sapatos pretos novos, camisa pólo azul cheia de manchas e uma outra por debaixo, cor marrom; os óculos de armação prata têm lentes que dão mais precisão aos olhos vermelhos; à altura da cintura, Seu Genaro carrega um dreno.

- E tem isso daqui ainda, indica Seu Genaro mostrando o saquinho plástico que concentra o fluxo de urina. Há três anos, Seu Genaro percebeu uma hemorragia no canal urinário. Foi encaminhado ao hospital. Além do diagnóstico de rompimento da bexiga, só se lembra da presença de seus três filhos na sala de recuperação comunicando-lhe o livramento. - Era para eu morrer e nem perceber, conclui.

No bolso da calça próximo ao dreno, Seu Genaro carrega o Registro Geral, recentemente tirado. Lá consta que ontem, dia 6 de agosto, ele completou mais um ano de vida. China desconhece a data, e nem imagina que no documento Seu Genaro é na verdade Januário Federico, que por sua vez não sabe que China é apelido para Nelson.

China aproveita o silêncio do amigo para contar a novidade. - Comecei uma campanha de 7 semanas na igreja. A afirmação tem tom de convite.

- Isso é bom, retruca o amigo. China freqüenta uma igreja do bairro há pouco tempo e acredita que lá poderá ser curado da Fibrose Pulmonar. Além de ir à igreja, ele assiste aos programas de televisão que apresentam solução para a doença – condição única para quem já ouviu dos médicos a palavra incurável.

Seu Genaro também se apóia no telefone público. Está cansado. Já são 17h. Desde as 15h está na rua para encontrar os companheiros do bairro e colocar a conversa em dia. - Lembra do Rago? Também está mal, se sujando todo. China recebe a notícia com surpresa, pois há duas semanas o velho de 90 anos estava firme e forte tocando seu violão na Rua Treze de Maio. Ainda perplexo, China comenta com o amigo, - Estamos em idade regressiva.

Ambos se despedem e seguem caminho pela Rua Conselheiro Carrão.



* Escrevi este texto para o livro que estou preparando junto com meu grupo de trabalho de conclusão de curso em Jornalismo.

1 Comments:

Blogger Fernanda said...

Dani,
Eu sei que você sabe disso. E sei que mais de algumas várias pessoas já te disseram isso. Mas, mesmo assim, eu quero dar a minha opinião sobre isso: você escreve tão bem, tão bem que eu me vi encostada nesse telefone público completamente entretida na conversa.

segunda-feira, setembro 03, 2007 12:24:00 PM  

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